sexta-feira, 1 de junho de 2007

Boff: Ratzinger me mostrou a dureza do Vaticano

Lluís Amiguet

"Tenho 68 anos; sinto o peso da idade, mas também o equilíbrio e a serenidade de ter vivido. Nasci no Brasil e é com dor que vejo morrer a Amazônia e seus filhos. Deixei o sacerdócio porque o Vaticano me exigiu não humildade, que é uma virtude, mas humilhação, que é um pecado. Resta-me a palavra. Colaboro com a fundação Alfonso Comín".

Esse é o resumo que o teólogo brasileiro Leonardo Boff faz de sua trajetória religiosa. Em entrevista ao La Vanguardia ele relembra momentos marcantes como o encontro com o então cardeal Joseph Ratzinger, hoje papa Bento XVI. Leia abaixo a entrevista na ítegra:

Padre Boff...
Não me chame de padre; isso não agrada ao Vaticano.

Como o senhor prefere que eu o chame?
Como quiser; continuo sendo o mesmo. Mudei de trincheira para prosseguir na mesma batalha. Deixei o sacerdócio, mas continuo teólogo, e nunca mais tive problemas com o Vaticano.

Faça um resumo de sua vida em três cenas.
Nasci no Brasil, estudei Teologia no seminário e me tornei franciscano. Fui à Alemanha estudar Teologia e voltei à Amazônia.

O senhor se interessou pela Teologia crítica alemã?
Imaginemos agora essa primeira cena; estamos em Manaus, a capital do Amazonas, e explico a uma audiência de cristãos e sacerdotes sobre "Jesus na visão crítica da ciência". Percebo em seus olhos que eles não entendem coisa alguma. Um deles me pergunta como é que pode anunciar esse Jesus aos indígenas que são mortos nas terras dos latifundiários, que as desflorestam e acabam com os índios e com todo o mundo deles.

E então?
Foi ali que me dei conta de que deveria ser humilde e aceitar que era preciso reinventar a teologia com base nessas pessoas. Na cena seguinte estou em Roma, sentado à mesma cadeira que Galileu e Giordano Bruno ocuparam um dia.

A das causas da Inquisição.
Foi lá que o então cardeal Ratzinger me processou, e foi lá que senti profundamente a dureza e a falta de coração do Vaticano.

E em seguida?
Na terceira cena, estamos na Eco 92, no Rio de Janeiro, e acabei de conversar com o Dalai Lama. Um cardeal da Cúria romana se aproxima de mim para me reprovar. "Você não aprendeu nada sobre a necessidade de silêncio".

E então?
"Pode escolher: Filipinas ou Coréia". O senhor se negou a ir?
Obedeci, mas perguntei ao cardeal se poderia continuar falando, escrevendo, ensinando. Ele respondeu que não, porque estavam me ordenando manter o silêncio, em um convento.

E então o senhor se negou a obedecer.
Porque já não se tratava de humildade, que é uma virtude, mas de humilhação, que é um pecado. Um teólogo só tem a palavra para se manter vivo, e se negar a usá-la é como morrer. Assim, abandonei o sacerdócio.

O senhor mantém um ministério universal?
Sou um cigano teológico, mas estou convencido a seguir defendendo minha fé, que não é a única verdade. Nisso discordo de Roma.

A verdade, eles dizem por lá, é só uma: a deles.
O Vaticano sustenta que sem a Igreja não existe salvação, e isso é uma arrogância medieval. O espírito de Deus está em toda parte, e Deus, ao encarar a humanidade, vê a todos os seus filhos; não olha apenas para o Vaticano.

Para Roma, isso constitui relativismo moral.
Roma tem medo do presente, da diversidade; teme a modernidade e o futuro. Quando, se aceitasse que a posição central não é da Igreja, mas da humanidade inteira, poderia realmente salvar o mundo.

Como?
Superando o choque de culturas que causa o terrorismo e os fundamentalismos. Teríamos que aceitar que Igreja alguma é portadora da verdade única, e só assim poderíamos chegar a uma paz duradoura.

Todos sabemos algo da verdade, mas nenhum de nós a sabe inteira.
Antonio Machado explica bem: "Não me dê tua verdade; busquemos juntos a verdade, e a tua e a minha guardaremos".

Se a verdade é única, sempre anda armada.
O Ocidente, com a pretensão de impor sua verdade, que acredita única, levou a guerra e a exploração a muitos lugares, e o sistema que impôs ameaça agora devastar o planeta, o lar da humanidade.

A Amazônia corre perigo.
O planeta corre perigo. Lembre-se de que a palavra homem vem de "humus", terra. Somos a Terra, e se a destruirmos não sobreviveremos. O Papa deveria ter se pronunciado sobre a Terra, em sua visita ao Brasil.

Essa é a mensagem de São Francisco.
Por isso continuo franciscano. Francisco está mais vivo que nós, embora tenha nascido há 800 anos.

É o santo ecológico.
Francisco abraçou a todas as criaturas da Terra com emoção verdadeira. É o santo do diálogo com todos, começando pelo irmão lobo, então flagelo do homem.

E hoje, pobrezinho, uma espécie em extinção.
Francisco soube ver a comunidade de todos os seres vivos, e a união inseparável entre todos eles, e entre eles e a Terra. Não existe felicidade possível caso exploremos os homens e as demais espécies. Adão vem de "adana", boa terra.

Mas "povoarás a Terra e a dominará"...
Esse "dominará" foi mal traduzido; no original bíblico a referência é a cuidar da Terra, como se cuida de uma herança. Tratamos a Terra como se fosse uma mina da qual extrair riquezas e depois abandonar, esquecer. E a Terra somos nós.

Sua mensagem para a rica Espanha?
Recordem-se de que um dia foram pobres e hoje fazem parte dos 20% da humanidade que se apropria de 80% das riquezas do planeta, as quais deveriam pertencer a todos.

O que fazer?
Transformar com a paz e a palavra o sistema que explora nossa Terra e faz com que exploremos uns aos outros.

Como?
Comecemos por transformar a nós mesmos, tomando consciência e pressionando nossos governantes com nossos votos e argumentos, a fim de evitar o sofrimento e exploração das demais pessoas e espécies. Se não o fizermos, por mais que tenhamos, teremos nada.

Teodiversidade
Escuto em Boff um homem sábio e bom, porque percebe-se nele a bondade e, se outro teólogo mal visto em Roma, Hans Küng, falou aqui sobre a inteligência bondosa, Boff por sua vez fala em bondade inteligente. Seu discurso - moderno porque franciscano - sobre a biodiversidade e a teodiversidade como forma de evitar o confronto de civilizações é humilde, sincero, sentido e necessário.

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